— Um mundo de palavras ferinas e sorrisos cínicos, é o que lhe aguarda minha criança, não pense que o mundo é feito apenas de um belo céu azul com nuvens brancas, pastos verdes e flores coloridas. Tema o que está la fora.
O casebre era escuro, as janelas sempre meio fechadas, a pouca luz que entrava iluminava parcamente montes de papeis velhos, antigos rabiscos das ilusões a muito esquecidas. Aquele cheiro azedo de leite passado misturado ao alcatrão e perfume de lavanda.
Ela gostava de observar como a luz incidia no pó... Raios de luz que tinham a capacidade de transformar o velho e esquecido em algo novo e belo. Pequenos cristais de história que acumulavam em todo lugar. Mas bastava um pequeno movimento para alegrar o lúgubre cenário.
— Cuidado, não se mova depressa demais! Dizia a velha senhora, não sonhe muito alto pois pode cair e se machucar, minha criança.
Vivia um dia de cada vez, sempre sorrindo em seu pequeno mundo de impossibilidades, todos os dias removendo os baobás de seu pequeno planeta particular. Não admitia sonhar apesar de ser assolada todas as noites pelos sonhos mais lindos, pelas possibilidades mais fantásticas. Conversava todos os dias com seus demônios, pequenas criaturas em sua mente, com vozes e sotaques diferentes, seres de todo o mundo, de lugares que ela só conhecia através de seu sonhar.
— Sempre que passar em frente a uma sombra, atire uma pedra minha criança, isso espanta os demônios. E pedras se amontoavam nos cantos do casebre, formando pilhas dignas do melhor alpinista.
Mas Ela não temia os demônios, tentava entende-los e liberta-los. Queria que fossem livres pois acreditava que eram apenas mal compreendidos. Mas mesmo assim quando passava em frente a uma sombra, atirava uma pedra, se desculpava em seguida, pois podia ouvir o gemido que dali saia.
— O tempo minha criança, um dia eu não estarei mais aqui, e você será responsável por tudo, meus papeis, meus sonhos, você deverá continuar e fazer aquilo que eu não consegui cumprir. É seu destino, vê estes livors? Pois cuide deles, os guarde, mas não os leia nunca.
Ela organizava o caos de ideias de um passado desconhecido, cega para o que ali havia. Quando o sol começava a se por e os pequenos raios de luz morriam, sentava ao lado da lareira de pedra, o fogo apagado para não arriscar queimar o conhecimento perdido. Sentada ali tricotava uma colcha cinza, com os olhos perdidos no escuro da sala. Uma noite adormeceu ali e despertou na mesma posição, mas um ponto de luz do outro lado sala lhe chamou a atenção, era um ponto novo, que não existia antes.
— Venha minha criança, vamos cozinhar nossas batatas, levante-se. A velha em pé, parada diante da criança tapava o pequeno ponto de luz, sua voz rouca e firme era capaz de desmontar o mais sublime momento de devaneio.
Cortando batatas, contava os furinhos na casca, imaginando que poderiam conter segredos ainda não descobertos. Uma, duas, três, quinze... picava enquanto a mente vagava no mundo de possibilidades dos furinhos das batatas. Um furo, era isso. Era por um furo que a luz entrava pela parede. Naquela noite sentou-se ao lado do furo, tricotando e pensando em como aquele furo aparecera ali.
Dias se passavam, batatas, colcha, livros, pó... "Veja minha criança, escute minha criança, entenda, observe, esqueça... não pense, apenas acredite". A cada fim de tarde o furo parecia maior, e a luz que por ali entrava marcava o piso apodrecido revelando as ranhuras da madeira, cada dia mais.
— Quando tinha sua idade minha criança, o mundo era diferente. Não haviam tantos demônios a solta, e eu podia sair desta casa. — A velha adormecia sentada em sua cadeira de balanço relembrando um passado remoto. —
Nunca acredite no que te contam, pode ser um demônio disfarçado, escute a voz.
Sentada ao lado do pequeno buraco que se formara passou a ouvir um ruido durante os finais de tarde, como se algo arranhasse a madeira, mas não se atrevia olhar. Sua colcha era importante, não podia deixar de tricotar. O ruido passou a ser familiar, seria um demônio, pensou. Mais um para o grupo que lhe acompanhava. Uma manhã passou pelo buraco e viu uma sombra, atirou uma pedra e escutou um gemido. Sim era um demônio. Pediu desculpas e continuou seu caminho, triste por ter que tapar a nova possibilidade que ali surgia, pois sabia que a cada manhã iria atirar mais uma pedra. Mas no dia seguinte a pedra que atirara não estava mais ali. Curiosa se abaixou e procurou, talvez fosse apenas um pedrisco teria que usar uma maior dessa vez.
—
Desconfie ate de si mesma minha criança, não deve nunca confiar. O mundo não confia em você, não cometa o erro de ir contra isso.
Esqueceu de atirar a pedra aquela manhã, e ao entardecer ouviu um , "obrigado". Olhou para o buraco e viu uma pequena flor de macela, amarela, com um pequeno caule verde, algo singelo, pequeno. Nunca havia ganhado uma flor, na verdade nem sabia o que era uma flor. — Eu que agradeço. Sentindo-se culpada voltou a seu tricô, não deveria ter falado em voz alta. No dia seguinte ao passar pelo buraco atirou outra pedra, mas dessa vez jogou para trás. Novamente um obrigado e dessa vez duas pequenas flores. Os dias foram passando com batatas e tricô, com poeira e dizeres amargos. E a voz que agradecia contava de um mundo colorido, de possibilidades. Falava de um casebre antigo, envolto por flores e trepadeiras que serpenteavam as paredes. Falava do sol, que brilhava do lado de fora da janela. As pedras que eram atiradas para trás iam se amontoando.
— Cuidado criança, não se iluda, não acredite, não... não... não... a voz já abafada pelas pedras lançadas ao revés.
O buraco aumentava de tamanho a cada dia, e a cada dia um pequeno buquê de macelas, uma nova história e um novo sonho. Numa tarde atreveu-se a olhar. Abaixou a cabeça e viu um pequeno coelho branco sentado sobre as patas trazeiras, com um pequeno buquê de flores na boca. Além do coelho viu o por do sol, o laranja que tomava conta do horizonte, o céu azul e os campos verdes. Soltou a colcha de tricô e deitou para observar a bela cena do entardecer, se permitiu sonhar. Admirada com as verdades que seus sonhos lhe traziam, esperando que o buraco fosse grande o suficiente para por ali passar. Passou a duvidar e questionar, e a voz da velha senhora foi sumindo em proporção a pilha de pedras no meio da sala.
—
Humm, hun ,hum.. crian...
Das macelas fez um travesseiro e todas as tardes se deitava sob um grande carvalho, conversava livremente com seus demônios sobre os mais diversos assuntos, sentia o vento no rosto e o aroma das rosas selvagens. Adormecia ali e sonhava com as possibilidade que aquele insistente coelho lhe trouxera.